Eis o contexto: no meio de uma temporada de poucas perspectivas, surgiu o concurso para Professor da Educação Básica II da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo no fim de 2013 por $29 a inscrição. Sempre me diziam que concurso público para professor era algo que eu deveria fazer para conhecer a prova e, quem sabe, assumir cargo depois de um bom tempo aguardando a ordem de chamada. Quatro meses depois, eu entrava na sala de aula como professor de Arte pela primeira vez na minha vida, ao contrário de muitos educadores que apenas fazem o concurso para se efetivar na carreira pública.
Dentro da listinha de possibilidades para escola-sede, consegui a Escola Estadual de São Paulo. Sim, este é o nome da escola - simplesmente a primeira não-religiosa do Estado, inaugurada em 1894 e atualmente localizada (ou escondida) ao lado do Museu Catavento Cultural. Foi ali que percebi que, na faculdade, eu aprendi a dar aula; antes disso, no mundo real, eu precisava aprender a ser professor. E este é um processo autodidata! Podem te ensinar a preencher a presença no Diário de Classe ou a se comportar diante dos conflitos, mas uma centena de coisas virão e você terá de engolir seco e descobrir no susto. Enquanto eu aprendia a ser professor, o meu ânimo com aquele trabalho só aumentava, apesar dos acidentes de percurso. Cada aula era um novo aprendizado que me dava a sede de pensar de novo e ir adiante.
Eu tive a sorte de estar rodeado de colegas jovens na escola e na profissão no primeiro ano de trabalho, pela disposição em compartilhar o conhecimento das aulas e de tomar novas atitudes naquele ambiente todo. O segundo ano foi o momento de respirar fundo e começar a seguir com minhas próprias pernas. Mais confortável e seguro com o meu papel de professor, com o desejo de me comunicar profundamente com os estudantes, o fim de mais um ano de trabalho foi agitado pelas ocupações das escolas estaduais paulistas, em protesto a uma proposta do governo estadual chamada de "reorganização escolar".
A reorganização escolar consistia em manter ciclos únicos em cada escola: 1º a 5º ano do Ensino Fundamental aqui, 6º a 9º ano do Ensino Fundamental ali e 1ª a 3ª série do Ensino Médio acolá. Na minha escola, atendemos do 6º ano a 3ª série. O governo diz que os dados não mentem: escolas com ciclos únicos têm melhores resultados nas avaliações externas e a queda da taxa de natalidade fez reduzir a quantidade de crianças no estado, ou seja, estava sobrando escola e faltando estudante. Tudo seria friamente calculado para que ninguém tivesse que se deslocar além de 1,5km da escola antiga. E 94 escolas seriam "destinadas a outros serviços educacionais".
Como nunca se ouviu falar do grande plano antes, parecia que o SPTV estava apenas comunicando em primeira mão algo para anos futuros. Porém, era para ontem mesmo. A experiência nos fez estranhar esmola grande e logo foi ficando claro que, se as atribuições de aula de 2015 já deixaram muitos dos professores novos adidos (sem aula na escola-sede, tendo que se virar com aulas onde as tivesse), as atribuições de 2016 deixariam até professores mais experientes na mão. Os professores das escolas que fechariam ou perderiam o ciclo adequado à formação do professor entrariam na dispusta por aulas com outros professores nas escolas que escolhessem. Um cenário de guerra se anunciando, mas mantendo as salas de aulas com nada menos que 40 matriculados cada.
Se a ameaça técnica do projeto já era assustadora, a luta diária pela sensação de pertencimento que ainda vibra quando somos jovens se acendeu nas pessoinhas que são chamadas de "apáticas" em todos os conselhos de classe. Em menos de uma semana, dezenas de escolas ocupadas pelos próprios estudantes. E eu me perguntava: será que isso vai chegar "aqui"? Aí, chegou a pergunta num canto do corredor: professor, o que você acha das ocupações? E, com a leveza conquistada no meu labor, eu disse que admirava a iniciativa e a promessa de transformação profunda com as atividades promovidas nas ocupações por demanda de quem estuda "lá". E isso chegou lá.
Confesso: foi num dia em que eu não tinha aula na escola, e foi ótimo não estar lá. Pude encher meus pulmões e gritar, comemorar livremente a tomada de atitude de alunos que eu conhecia. Quase coloquei meu tênis e fui reverenciar de perto. Aguardei um "convite" da supervisão regional para ir até a escola recuperar os digníssimos Diários de Classe e conheci as instalações, os primeiros passos de transformação, organização e ressignificação daquele lugar.
O meu olhar sobre aquela escola mudou. "Aquela escola" feita de alunos e não "aquela escola" feita por Direção. Tenho muito o que conversar com eles quando voltarmos às aulas em fevereiro. Tenho muito o que reconfigurar na minha intenção única e pura de realmente fazer sentido naquele local.
A surpresa maior foi a ocupação persistir além das demais escolas, uma vez que a decisão de reorganizar foi suspensa pelo próprio governo. Eles passaram o Natal na escola! Desocuparam somente na manhã do dia 31/12. Eu soube de toda e qualquer desqualificação do protesto por meus próprios colegas professores. Chamaram de orgia, cracolândia, Sodoma-Gomorra, playground. É uma pena que pessoas envolvidas com a educação vejam os jovens o ano inteiro com a certeza inquestionável da inferioridade racial/social/intelectual deles. Pois é com essa mesma inferioridade que os alunos enxergam professores o ano inteiro. E está feito o resumo da atual conjuntura da educação no Brasil. Com um poquinho mais de atenção, fica exposto o ano inteiro o que verdadeiramente é ensinado nas escolas. Não é Português e Matemática, definitivamente.
Culturalmente, isolamo-nos em nossas especificidades. Sabemos tudo de educação, mas não sabemos nada de psicologia, de "ser" humano. Achamos que o aluno só aprende o que está na lousa, e esquecemos que ele também vai aprender com o seu desprezo, com a sua ironia e dissimulação. Ele aprenderá o que são essas coisas e como usá-las. Ele vai aprender que, quando se fecha a porta, você usa pequenos poderes e oprime do jeito que quiser. Alguns jovens vão experimentar esse ambiente com estranheza, em contraponto ao que vivem em casa; outros, vão apenas confirmar que todo mundo é assim mesmo e que respeito não existe. Qual tipo de estudante você quer ver numa ocupação?
Qual tipo de ser humano você está ajudando a construir?
Dentro da listinha de possibilidades para escola-sede, consegui a Escola Estadual de São Paulo. Sim, este é o nome da escola - simplesmente a primeira não-religiosa do Estado, inaugurada em 1894 e atualmente localizada (ou escondida) ao lado do Museu Catavento Cultural. Foi ali que percebi que, na faculdade, eu aprendi a dar aula; antes disso, no mundo real, eu precisava aprender a ser professor. E este é um processo autodidata! Podem te ensinar a preencher a presença no Diário de Classe ou a se comportar diante dos conflitos, mas uma centena de coisas virão e você terá de engolir seco e descobrir no susto. Enquanto eu aprendia a ser professor, o meu ânimo com aquele trabalho só aumentava, apesar dos acidentes de percurso. Cada aula era um novo aprendizado que me dava a sede de pensar de novo e ir adiante.
Eu tive a sorte de estar rodeado de colegas jovens na escola e na profissão no primeiro ano de trabalho, pela disposição em compartilhar o conhecimento das aulas e de tomar novas atitudes naquele ambiente todo. O segundo ano foi o momento de respirar fundo e começar a seguir com minhas próprias pernas. Mais confortável e seguro com o meu papel de professor, com o desejo de me comunicar profundamente com os estudantes, o fim de mais um ano de trabalho foi agitado pelas ocupações das escolas estaduais paulistas, em protesto a uma proposta do governo estadual chamada de "reorganização escolar".
A reorganização escolar consistia em manter ciclos únicos em cada escola: 1º a 5º ano do Ensino Fundamental aqui, 6º a 9º ano do Ensino Fundamental ali e 1ª a 3ª série do Ensino Médio acolá. Na minha escola, atendemos do 6º ano a 3ª série. O governo diz que os dados não mentem: escolas com ciclos únicos têm melhores resultados nas avaliações externas e a queda da taxa de natalidade fez reduzir a quantidade de crianças no estado, ou seja, estava sobrando escola e faltando estudante. Tudo seria friamente calculado para que ninguém tivesse que se deslocar além de 1,5km da escola antiga. E 94 escolas seriam "destinadas a outros serviços educacionais".
Como nunca se ouviu falar do grande plano antes, parecia que o SPTV estava apenas comunicando em primeira mão algo para anos futuros. Porém, era para ontem mesmo. A experiência nos fez estranhar esmola grande e logo foi ficando claro que, se as atribuições de aula de 2015 já deixaram muitos dos professores novos adidos (sem aula na escola-sede, tendo que se virar com aulas onde as tivesse), as atribuições de 2016 deixariam até professores mais experientes na mão. Os professores das escolas que fechariam ou perderiam o ciclo adequado à formação do professor entrariam na dispusta por aulas com outros professores nas escolas que escolhessem. Um cenário de guerra se anunciando, mas mantendo as salas de aulas com nada menos que 40 matriculados cada.
Se a ameaça técnica do projeto já era assustadora, a luta diária pela sensação de pertencimento que ainda vibra quando somos jovens se acendeu nas pessoinhas que são chamadas de "apáticas" em todos os conselhos de classe. Em menos de uma semana, dezenas de escolas ocupadas pelos próprios estudantes. E eu me perguntava: será que isso vai chegar "aqui"? Aí, chegou a pergunta num canto do corredor: professor, o que você acha das ocupações? E, com a leveza conquistada no meu labor, eu disse que admirava a iniciativa e a promessa de transformação profunda com as atividades promovidas nas ocupações por demanda de quem estuda "lá". E isso chegou lá.
Confesso: foi num dia em que eu não tinha aula na escola, e foi ótimo não estar lá. Pude encher meus pulmões e gritar, comemorar livremente a tomada de atitude de alunos que eu conhecia. Quase coloquei meu tênis e fui reverenciar de perto. Aguardei um "convite" da supervisão regional para ir até a escola recuperar os digníssimos Diários de Classe e conheci as instalações, os primeiros passos de transformação, organização e ressignificação daquele lugar.
O meu olhar sobre aquela escola mudou. "Aquela escola" feita de alunos e não "aquela escola" feita por Direção. Tenho muito o que conversar com eles quando voltarmos às aulas em fevereiro. Tenho muito o que reconfigurar na minha intenção única e pura de realmente fazer sentido naquele local.
A surpresa maior foi a ocupação persistir além das demais escolas, uma vez que a decisão de reorganizar foi suspensa pelo próprio governo. Eles passaram o Natal na escola! Desocuparam somente na manhã do dia 31/12. Eu soube de toda e qualquer desqualificação do protesto por meus próprios colegas professores. Chamaram de orgia, cracolândia, Sodoma-Gomorra, playground. É uma pena que pessoas envolvidas com a educação vejam os jovens o ano inteiro com a certeza inquestionável da inferioridade racial/social/intelectual deles. Pois é com essa mesma inferioridade que os alunos enxergam professores o ano inteiro. E está feito o resumo da atual conjuntura da educação no Brasil. Com um poquinho mais de atenção, fica exposto o ano inteiro o que verdadeiramente é ensinado nas escolas. Não é Português e Matemática, definitivamente.
Culturalmente, isolamo-nos em nossas especificidades. Sabemos tudo de educação, mas não sabemos nada de psicologia, de "ser" humano. Achamos que o aluno só aprende o que está na lousa, e esquecemos que ele também vai aprender com o seu desprezo, com a sua ironia e dissimulação. Ele aprenderá o que são essas coisas e como usá-las. Ele vai aprender que, quando se fecha a porta, você usa pequenos poderes e oprime do jeito que quiser. Alguns jovens vão experimentar esse ambiente com estranheza, em contraponto ao que vivem em casa; outros, vão apenas confirmar que todo mundo é assim mesmo e que respeito não existe. Qual tipo de estudante você quer ver numa ocupação?
Qual tipo de ser humano você está ajudando a construir?